quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Leviana

«No atelier dum fotógrafo. A Leviana prepara-se para tirar o retrato, mas está na dúvida se a meio corpo se a corpo inteiro. Eu quero-a dos pés à cabeça, quero-lhe o esqueleto todo. Ando a aprender anatomia naquele corpo. A irmã, porém, não acha decente o corpo inteiro. O corpo das mulheres é, pelo visto, um clube mundano com salas reservadas só para sócios. Fica, portanto, resolvido o meio corpo. Eu amuo, entristeço, pego nas palavras, nos sorrisos, meto tudo isso no cofre, no cofre forte do meu rosto impenetrável...
A Leviana, porém, decide arrombar o cofre. Aproxima-se de mim, e, como quem passa um bombom, escorrega-me aos ouvidos:
- Deixa lá... Tiro agora o meio corpo e dou-te logo o resto...
»
Em Leviana de António Ferro.

Capa da 4ª edição de Leviana, publicada em 1979, com
desenho de António Soares.

Escrita em 1919 e publicada em 1921, a obra Leviana de António Ferro procurou trazer uma lufada de ar fresco ao panorama literário português. A sua tentativa de introduzir em Portugal os romances directos, deixou indubitavelmente uma marca, ou não fosse António Ferro um homem de visão, de futuro, das vanguardas e do progresso, sem com isso deixar de ser um homem de tradição e de raízes, numa junção que fazem dele um dos grandes portugueses do século XX.
A forma como decorre a narrativa em Leviana é assaz equilibrada. O texto resultou, no entender do seu autor, num produto literário um pouco extenso demais para o seu objectivo inicial, contudo, o leitor ficará por certo com uma ideia completamente contrária, isto é, tudo parece estar organizado na sua exacta medida. Da extensão do texto, ao suspense das declarações sensuais que desvendam o axioma do ser da  nossa protagonista, nada parece deixado ao acaso. Para isso, muito contribui a elegância da escrita de António Ferro, fluente e envolvente como o seu discurso. 
Alguns poderão achar descabido o facto de encararmos a Leviana como uma obra de um certo cariz erótico-sensual, sobretudo se olharmos para os padrões destas classificações nos dias de hoje. Não obstante, parece-nos por demais óbvia uma certa lasciva elegante na forma como a personagem principal se vai revelando ao longo da história. As alterações no modo da narração, tornando a Leviana o centro de toda a acção, mais do que uma história envolvente que por si só não existe, confere um grau de extrema proximidade entre a personagem e o leitor, introduzindo-o na própria narrativa, como mais um observador ou presa seduzida.
A Leviana assume-se desta maneira como um interessante exemplo do novo romance do Portugal de inícios do século XX. Um livro sensual onde o eros jamais se confunde e mistura com o calão e deselegância do vocabulário cru e explicito, necessário por outros autores, para conferirem sensualidade e erotismo aos seus textos.

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