«Ao longo de quase três décadas de escrita ininterrupta, Jorge Lima Barreto construiu e legitimou, por mérito próprio, o seu campo de estudo - um amplo espectro de linguagens estético-musicais que vão da vanguarda erudita ao jazz, e do minimalismo às componentes musicais associadas às novas artes performativas e ao multimédia. (...)
Uma Cultura enriquece-se, indiscutivelmente, ao manter vivos as suas raízes e o seu património histórico-musicais, mas castra-se, envelhece e morre sem geração se não souber extrair dessa consciência do seu passado a energia para investir na criação artística permanente, capaz de continuar, a cada momento, a constituir novo património. Por isso - e porque, ainda por cima, esta negação enfática da contemporaneidade tem muito a ver com a subordinação crescente da nossa vida cultural aos interesses e estratégias dos grandes grupos económicos multinacionais em que assentam a indústria discográfica e audiovisual e o mercado concertístico - não posso deixar de me solidarizar com este verdadeiro sacerdócio de Jorge Lima Barreto em prol das músicas do presente, que é também, em última análise, parte de um combate mais geral indispensável contra um poder económico ilegítimo, alienante e destruidor.
Mas Jorge Lima Barreto não incide de forma acrítica e neutra, como o faria um antropólogo, sobre a totalidade das músicas contemporâneas. Assume preferências, mesmo que eclécticas, faz escolhas eminentemente idiossincráticas, e é assim que privilegia inequivocamente os domínios da criação musical que contêm uma nítida vertente experimental e que se situam, por isso mesmo, à margem da produção massificada do mercado dos sons, pensada para o fabrico e venda constantes de objectos musicais aferidos pelos padrões e expectativas médios do público consumidor. Também aqui há um gesto político e ideológico com o qual me identifico profundamente: o da recusa da globalização uniformizadora, o da valorização das correntes minoritárias, o da salvaguarda, afinal, do direito à diferença. (...)
Lima Barreto ama apaixonadamente as "suas" músicas - todas elas e cada uma delas -, e este amor transparece de forma nítida na sua escrita como nas suas próprias opções de vida. Raras vezes conheci alguém que vivesse de um modo tão absoluto para a Música, investindo nela com tal intensidade o seu tempo, os seus recursos, as suas emoções; e é esta dedicação integral (vem-me aqui de novo à mente a palavra "sacerdócio" no sentido mais nobre) que se revela no seu discurso e lhe dá uma autenticidade e uma força moral inegáveis, partilhe-se ou não integralmente os pressupostos epistemológicos da abordagem adoptada.»
Rui Vieira Nery no prefácio da obra Musonautas de Jorge Lima Barreto.
Portugal não empobrece quando uma agência de ranking especula criminosamente sobre a nossa situação económica. Portugal não depende sequer do materialismo do mundo moderno para se realizar. Depende sim, da sua memória colectiva e espiritual, bem como da força e tenacidade do génio português, essa vítima diária de múltiplas tentativas de assassinato por asfixia. Portugal empobrece quando perde as suas grandes referências culturais, intelectuais e artísticas, assim como quando esquece os seus maiores, tanto passados como presentes, hipotecando assim o sucesso dos vindouros.
Portugal ficou hoje mais pobre com o desaparecimento de Jorge Lima Barreto, indiscutivelmente, um dos maiores intelectuais portugueses de finais do séc. XX e inícios do séc. XXI. Músico, musicólogo, compositor, tradutor, poliartista, conferencista, académico, jornalista, radialista e coleccionador, Jorge Lima Barreto destacou-se em todas as suas áreas de intervenção, tanto em Portugal, como no estrangeiro.
Avesso às regras e leis de um sistema em que não acreditava e no qual não se revia, negou-o e combateu-o estoicamente com a maior das verticalidades, hipotecando desse modo algumas oportunidades que a sua sujeição talvez lhe proporcionassem. A sua força e determinação mostrou, de uma forma exemplar, a existência de outras vias, por ventura mais sinuosas e duras, para conquistar a imortalidade, abdicando da decadência a que os fracos se sujeitam para entre os seus pares se fazerem fortes.
Conhecido pela sua irreverência e não conformismo, destaca-se o seu percurso artístico, tendo sido logo desde os anos 1970 o principal introdutor e percursor em Portugal de várias gramáticas musicais, sobretudo após a criação do duo Telectu, juntamente com o músico e compositor Vítor Rua, já em inícios da década de 1980. Com dezenas de livros e álbuns editados, Jorge Lima Barreto actuou um pouco por todo o mundo, tendo trabalhado com alguns dos grandes nomes da música contemporânea como Elliot Sharp, Jac Berrocal, Chris Cutler, Louis Sclavis, Jean Sarbib, Paul Lytton, Evan Parker, Sunny Murray, Carlos Zíngaro, Ikue Mori, Paul Rutherford, Giancarlo Schiaffini, Eddie Prévost, entre inúmeros outros. No que concerne ao seu contributo bibliográfico nos domínios da musicologia, da antropologia social e estética, deixou-nos obras como Revolução do Jazz, Jazz-Off, Rock Trip, Musicónimos, Rock & Droga, JazzBand 1900/1960 - Anarqueologia do Jazz, Música Minimal Repetitiva, Nova Música Viva, JazzArte, O Siamês Telefax Stradivarius, Música e Mass Media, Musa Lusa, b-boy, Zapp, Musonautas, entre outras. Traduziu ainda nos anos 1970 obras de Jean Paul Sartre, Jean Piaget, Jacques Monod, Gisélle Noami e Michel Foucault.
Contrariamente ao que tem vindo a ser anunciado pela comunicação social, não foi uma pneumonia que ceifou a vida a Jorge Lima Barreto, ou qualquer outro problema de saúde. Não, pelo menos de uma forma directa. O que vitimou Jorge Lima Barreto foi o mundo moderno. Mundo moderno esse que nada tem a ver com o mundo das vanguardas que o nosso intelectual sempre ajudou a criar e onde sempre se moveu. Fala-se aqui de um mundo moderno assente nos pilares da mediocridade e da mesquinhez, dos interesses vis de quem pelo dinheiro tudo pode, tudo compra, tudo molda, tudo corrompe, tudo destrói. Essa é tenebrosa realidade que, durante toda a sua vida, o procurou eclipsar, após aperceber-se que não o conseguia vergar. Contudo, a luz do seu talento e do seu intelecto revelou-se quase sempre mais forte do que as trevas que o procuravam envolver. É este mundo que nunca conseguiu absorver Jorge Lima Barreto, procurando por isso negligenciá-lo e esquecê-lo que hoje o chora e procura celebrar...
Jorge Lima Barreto é assim um triunfador a quem Portugal muito deve, pelo que é um dever de todos os portugueses lembrarem a memória e a obra deste artista e intelectual.
Solstice II de Jorge Lima Barreto, retirado do álbum Neo Neon (2003).
(Aos que quiserem conhecer um pouco melhor e mais pormenorizadamente o riquíssimo percurso de Jorge Lima Barreto, poderão aceder
aqui ao seu currículo abreviado.)