O Mártir da Cruz, aguarela de Manuel Tavares (1958). |
Ó verdadeira Luz, justo Cordeiro,
Jesus benigno, manso e piedoso,
Filho do Padre Eterno verdadeiro!
Que causa te moveu, Rei poderoso,
tão escondida lá na mente eterna,
a padeceres fim tão desonroso
e deixar a mais alta e mais superna
cadeira e vida por mais escura
de quantas a mortal fama governa?
Ó preciosas chagas roxas, belas,
luminárias da noite tenebrosa,
de toda a luz privada das estrelas!
Ó Cruz bendita, cara, preciosa!
Contempla bem o passo que deram,
ó coroa de espinhos amargosa!
Vós, santos cravos, quando vos meteram,
à força de martelo, logo à hora
as serpentes e dragos se esconderam
O coração, a alma que não chora,
vendo-te, Redentor, com tantas dores,
em pedra viva de diamante mora.
Que não contemplais isto, pecadores,
e derramais mil lágrimas no dia,
vendo o Senhor tão triste dos Senhores!
Vai, caminho de glória; vai, pombinha
branca sem fel; bendita entre as mulheres;
vai, mãe da Lei da Graça, vai asinha
a o monte Calvário, se ver queres
ao teu precioso Filho antes de morto.
Desconsolada vai; vai, não esperes!
A o qual acharás bem sem conforto,
posto na Cruz, por partes mil chagado,
por nos dar sossegado e manso porto;
escarnecido, só, desamparado
entre dois malfeitores condenados,
de fariseus e armas rodeado.
Mas vós, cruéis, perversos, cheios de ira,
com grita e escárnio, riso, tudo misto,
estais asidos todos na mentira,
dizendo em alta voz: - Se tu és Cristo,
desce-te dessa cruz em que estás posto! -,
não bastando os milagres que haveis visto.
E tu, Senhor, metido em tal desgosto,
estás sofrendo penas tão estranhas
com humilde, sereno e manso rosto.
Ó algozes ingratos, de más manhas,
de troncos e penedos produzidos
nas mais altas e ásperas montanhas!
Que não vos humilhais, dizei, perdidos,
e não pedis perdão do que vos toca,
que, segundo é meu Deus, sereis ouvidos?
Pois Ele, com humilde rogo, invoca
a o Padre por vós benignamente,
deitando o fel e sangue pela boca,
dizendo: - Padre meu Omnipotente,
pedir-te quero, antes que me acabem,
que tudo isto perdoeis a esta gente,
pois o que fazem, certo, não o sabem.
Luís Vaz de Camões
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