«- É preciso fazer uma Encomendação das Almas. (...)
- Eu acho, Zé da Pinta, que tu te preocupas com as outras pessoas. Não há ninguém como tu.
Possivelmente, Zé da Pinta não o ouviu. Pelo menos, não parece tê-lo ouvido.
- Eu ainda não sei fazer isso sozinho. Podia acontecer qualquer coisa má, como aconteceu com o senhor António Maravilhas. D. Gonçalo, venha comigo fazer a Encomendação das Almas.
Não existe uma razão lógica e transparente que possa explicar a aceitação que Gonçalo Nuno deu ao pedido de Zé da Pinta. Isto deve ser entendido no sentido mais concreto e restrito da expressão: não há, não havia uma razão. (...)
Ao mesmo tempo que urinava nas calças sem se preocupar com as fraldas da incontinência, urinava também, com regalo acrescido, na Aldeia Global. (...)
Na última noite de Janeiro, uma noite em que havia bruma cerrada, a que o luar emprestava uma luminosidade branca, Gonçalo Nuno e Zé da Pinta, cinco minutos antes de soarem as doze badaladas na torre da igreja de Poiais da Santa Cruz, entraram no cemitério da aldeia, cujo portão não oferecia sérias resistências às mãos hábeis do rapaz.
Caminharam até ao centro do cemitério e aí se detiveram, envolvidos em rolos de bruma luminosa. Então, Gonçalo Nuno levantou a mão direita segurando a campainha que trouxera e disse três vezes em voz alta, enquanto badalava:
- Almas, acompanhai-me. (...)
Atrás deste, em procissão, vinham as almas dos defuntos. (...)
A procissão em que só dois participantes eram visíveis percorreu as ruas da aldeia com esses dois vivos a recitar alternadamente um Pai-Nosso e uma Avé-Maria.
Se fosse antigamente, abrir-se-iam as portas das casas e os habitantes juntar-se-iam ao cortejo, rezando, a encomendar as almas dos defuntos. Porém, como isto se passou numa época esclarecida, ninguém o fez porque havia impedimentos de peso. Na cidade abrira um novo shopping e os visitantes, nessa primeira noite, habilitavam-se a um grandioso sorteio cheio de valiosos prémios; uma estação de TV transmitia um desafio de futebol na Austrália, absolutamente crucial para o Campeonato mundial de sub-vinte; outra estação apresentava um programa em que os intervenientes contavam as suas desgraças em directo; outra, ainda, passava um softcore definitivo e a não perder.
Por tudo isso, a procissão não teve mais que aqueles dois participantes vivos. (...)»
Excerto de A Encomendação das Almas de João Aguiar.
Capa da 8ª edição do livro A Encomendação das Almas, lançado pelas Edições ASA. |
A Encomendação das Almas é um livro fundamental para a compreensão do confronto entre dois mundos, completamente, antagónicos. Ao longo das suas páginas, penetrámos num mundo tradicional que definha às mãos de uma frívola modernidade, imposta pelos novos paradigmas da sociedade moderna.
Escrito pelo recentemente falecido João Aguiar, autor de inúmeros trabalhos, entre os quais A Voz dos Deuses, A Hora de Sertório, Inês de Portugal, Navegador Solitário ou O Jardim das Delícias, foi por intermédio do nosso estimado amigo Flávio Gonçalves que, há cerca de um ano atrás, tomámos conhecimento desta obra, crítica e caricatural da nossa época, sendo por isso bastante natural a identificação do leitor com determinados episódios, alegóricos a acontecimentos dispersos e por todos, infelizmente, vividos ou presenciados, um pouco por todo o nosso Portugal.
Fazendo uma apologia do desprendimento material numa época do consumismo e materialismo primário, A Encomendação das Almas convida-nos ainda a conhecer a história de uma amizade, aparentemente impossível mas verdadeira, entre dois estranhos, resultante da relação entre um discípulo improvável que faz despertar um mestre num homem em fim de vida.
Para todos os que ainda não leram, aqui fica desde já a nossa nota de recomendação para esta obra, sintetizadora de uma comovente revolta prática contra o mundo moderno.
O João Aguiar, embora não seja um escritor extraordinário daqueles que deixa um leitor desconcertado, tem obras muito interessantes e altamente recomendáveis. Para além dos casos que referiste, dos quais destaco «A Voz dos Deuses» e o «Inês de Portugal», recomendo ainda o «Uma Deusa na Bruma» e a série de aventuras «O Bando dos Quatro». Este último é uma série juvenil que acompanhei assiduamente desde o primeiro número, quando ainda era miúdo, sem fazer ideia que uma das personagens (o enciclopédico tio João) era na realidade uma projecção do próprio João Aguiar.
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