terça-feira, 14 de julho de 2020

António Quadros faria hoje 97 anos

Conforme várias vezes referido, António Quadros foi, provavelmente, o rosto mais visível da Filosofia Portuguesa. Terá pesado para isso, não a sua ascendência familiar, sendo filho de António Ferro e Fernanda de Castro, mas sim a sua obra e legado, o seu carisma, dom para a comunicação, afável personalidade e extrema generosidade. 
Privou entre os maiores do seu tempo e com eles contribuiu para o aprofundamento e divulgação da  nossa História, Cultura e Filosofia. No campo dos estudos pessoanos foi, juntamente com Dalila Pereira da Costa, o principal hermeneuta do nosso poeta modernista, co-organizando com a autora de O Esoterismo de Fernando Pessoa a monumental edição de Obras Completas de Fernando Pessoa, publicada em três volumes de papel bíblia pela Lello Editores. Era um homem extremamente activo do ponto de vista intelectual, abraçando a sua obra com a maravilhosa predisposição de um missionário. Assumia que escrevia para aprender e que aprendia escrevendo. A sua singularidade tornou-o, à hora da sua morte, num homem insubstituível, amado e, por isso mesmo, saudoso. 
Em 2020, ano em que se publicou a primeira edição integral da sua obra Portugal, Razão e Mistério, contendo os dois volumes já publicados e um terceiro que, até agora, se encontrava inédito, cumprem-se também os 97 anos do seu nascimento. Desse modo, hoje, para relembrar o aniversário de António Quadros, partilhamos um belíssimo texto lavrado pela pena da sua filha, Rita Ferro, publicado a 3 de Abril de 1993, no jornal Semanário, dias depois da sua morte.
«Era um homem bizarro: inquietava-o o enigma do ser, falava de Cristo com admiração, exaltava-se com a Poesia e levava a sério as crianças – tinha o direito de se fascinar mais com ideias do que com automóveis. Vestia-se como os outros para não dar nas vistas, falava em voz baixa numa língua estranha, contrariava os seus instintos até aos limites e aprendeu tudo o que havia a aprender na vida para experimentar sozinho a dor da limitação humana. Ao mesmo tempo que se deixou arrebatar pelas pedras e pelas árvores, teve amigos feios, com caspa nos ombros e gravatas amarrotadas. Era tão crédulo e infantil que comovia: alugava a primeira casa que lhe impingiam, subscrevia revistas para ganhar o relógio digital e passava cheques aos amigos sem qualquer apreensão; no fundo, no fundo, achava o dinheiro um trambolho. Estava-se a borrifar para que os seus livros se não vendessem, porque não tinha pressa. Não precisava de se ter calado para que a sua voz se ouvisse, mas a culpa foi dele: preferiu sussurrar as suas ideias e cantar alto as dos outros. Inflamava-se com Homero e Sófocles, Camões e Shakespeare, Pascoaes e Pessoa, mas não fazia troça dos aspirantes ao Dom - tinha uma bondade disponível para companheiros e discípulos. Não era desconfiado como os aldrabões e apertava a mão aos adversários porque se esquecia das ofensas. Acreditava em coisas estranhas: que os contos de fadas não eram mentira, que havia uma transcendência nos homens e na História, que o seu País era eleito e os seus compatriotas homens de bem. Desgostava-se com a pobreza espiritual desta geração, vestia luto pela Natureza como qualquer de nós, mas tinha uma Fé inquebrantável na fraternidade universal e cósmica. Arranjou tempo para tudo: ajudar desconhecidos, fundar uma escola, jogar à bola com os netos, dissolver as vaidades. Uns, chamavam-lhe sábio, outros, maçador, mas ele não se ralava porque via "para além do Espelho", como só os poetas, os pensadores e talvez as crianças. Devia ser bom, porque foi amado pela mulher durante cinquenta anos. Partiu um dia "num barco em cuja vela branca se via uma cruz vermelha", e o bem mais valioso que deixou à família foi Portugal. No cais, foi enternecedor encontrar todos os seus amigos e todos os seus inimigos de lenço na mão, a acenarem com a mesma saudade e a mesma vergonha. Apesar do nevoeiro, o nevoeiro mítico onde tantos heróis e poetas se perderam, houve pessoas que juram ter visto uma estrela enorme a piscar o olho.»
Nascido a 14 de Julho de 1923, António Quadros completaria hoje 97 anos de vida.

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