«Ao terminar a leitura do conto O Inverno durava há muito, coincidindo com a conversa havida com António Sardinha e João Cabral do Nascimento, veio-me a inspiração de um trabalho repassado de misticismo e de um fôlego, numa noite, escrevi o Auto da Primavera, que foi publicado em 1919, com música e meu primo o Professor Luiz de Freitas Branco.»
Visconde do Porto da Cruz na introdução do Auto da Primavera.
Capa da segunda edição do Auto da Primavera (1950). |
Há alguns anos atrás, de visita à Escola Superior de Dança, escutamos estupefactos um professor de música afirmar, com bastante arrogância e presunção, que não tratava os compositores portugueses nas suas aulas por estes serem menores e não apresentarem obras musicalmente relevantes. Numa atitude que é transversal a praticamente todos os domínios da arte em Portugal, este professor deixou bem patente a ignorância e ignomínia com que a cultura nacional é hoje tratada em grande parte das nossas instituições.
A música erudita em Portugal não só existe, como constitui uma parte significativa do nosso património cultural. Não foi apenas com a idade de ouro da polifonia portuguesa que a cultura lusíada manifestou musicalmente o seu génio e esplendor. Tanto em períodos anteriores, como posteriores, chegando até ao nossos dias, a música portuguesa acompanhou ao longo dos séculos as várias tendências e revoluções, contribuindo em muitos casos para o desenvolvimento dos sucessivos movimentos de ruptura e vanguarda. Isto sem nunca perder a sua identidade e respectivas especificidades.
Infelizmente, nos últimos quarenta anos, à imagem de outras dimensões da cultura nacional, contrariando o nome de um interessante projecto de recuperação do nosso património musical, somos obrigados a afirmar que a música portuguesa não tem gostado de si própria. Nas primeiras páginas da obra seminal Música Minimal Repetitiva, o saudoso musicólogo Jorge Lima Barreto apontou o dedo a três factores que estariam na base desta triste realidade. A inépcia dos contratos culturais dos sucessivos governos; a influência dos mass media, controlados por uma “musoburocracia” que, de um modo inclemente, serve os empresários discográficos dependentes dos interesses estrangeiros; e por fim o próprio público, levado a desconfiar e repudiar tudo o que é português. Conforme podemos testemunhar quotidianamente, a análise destes três pontos é essencial para percebermos o esquecimento ao qual está votado o nosso património musical.
Luiz de Freitas Branco, renomada personalidade do panorama cultural português do século XX, constitui um dos muitos incontornáveis exemplos que nos permitem e obrigam a contrariar comentários infelizes como os daquele pobre professor, repetidor das directrizes antipatriotas do sistema. Compositor, músico e professor, Luiz de Freitas Branco fez parte dos seus estudos na Alemanha. Em Portugal manteve-se sempre próximo do Integralismo Lusitano, convivendo com Alberto Monsaraz, António Sardinha e Hipólito Raposo. Entre os seus alunos no Conservatório de Lisboa, do qual chegou a ser subdirector, constam nomes como Joly Braga Santos ou Maria Campina. Contudo, foi na área da composição musical que deixou a sua marca, através de uma extensíssima obra cujo inquestionável valor o imortalizou na História da Música.
No entanto, também os nossos compositores mais célebres possuem trabalhos menos conhecidos que aguardam o momento de serem redescobertos. É o caso do Auto da Primavera, obra «repassada de espiritualidade», acompanhada pela música de Luiz de Freitas Branco, escrita em meados de 1919 pelo seu excêntrico primo, o Visconde do Porto da Cruz. Nascida de um repto lançado por António Sardinha e João Cabral do Nascimento, esta obra pitoresca de inspiração místico-religiosa suscita a curiosidade de todos quanto se deleitam ao mergulhar num típico quadro romântico de inícios do século XX. Resta-nos hoje a virtude de aguardar pela possibilidade de voltarmos a poder ouvir esta peça, há décadas esquecida.
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