«...o intenso laço moral que é o culto dos Mortos...»
António Sardinha em O Valor da Raça.
É de conhecimento geral que os portugueses tendem a confundir, como que propositadamente e por motivos meramente práticos, o Dia de Todos dos Santos com o Dia dos Fiéis Defuntos. Um tipo de oposição que nos é natural face à natureza teórica das coisas, mesmo que estejamos a referir-nos a preceitos teológicos ou religiosos. E sim, o português é um Povo de Fé. Sempre foi e sempre será, não obstante a natureza selvagem e heterodoxa que caracteriza, por vezes, o axioma da sua alma colectiva.
Esse espírito indomável que tantas vezes tende, talvez por aversão ao tédio e à fervente vontade de viver, a reinventar os modos de ver e projectar a nossa tradição, acabando por renovar-se constantemente, mostrando a vitalidade incomum do nosso ethos face ao de outros povos. Lembremos, por exemplo, as especificidades do nosso primeiro modernismo que mais não fez do que procurar reintegrar Portugal no seu próprio eixo espiritual, reaproximando a nossa Pátria da sua ancestral e quase milenar tradição.
Com efeito, voltando à vivência espiritual do Dia dos Fiéis Defuntos no Dia de Todos os Santos, recordamos um eco da mais antiga e profunda religiosidade portuguesa, associada ao culto dos mortos. Um eco forte e contemporâneo que replica um grito atávico cuja origem recente é, no mínimo improvável. Porém, assim são os desígnios de Deus e dos princípios teleológicos da nossa Pátria. O delírio mecânico-futurista patente no tema 1.º de Novembro, da autoria dos bracarenses Mão Morta, reflecte a existência de uma luz que anima até as mais improváveis almas. O ambiente retratado pela letra desta música, pesado e lúgubre, transmite a persistência salvífica da nossa tradição num mundo que lhe é cada vez mais hostil. Afinal, entre os modernos ritmos do nosso quotidiano, subsiste ainda aquela alma portuguesa, dotada de uma doçura humana quase transcendente, nada indiferente à dor causada por uma solidão contrabalançada pela saudade do porvir.
O amor e a saudade que sentimos na dor causada pela falta dos nossos mortos não é mais do que aquele grito surdo de querermos perpetuar aquém-vida e além-morte. São as glórias, as paixões e memórias vividas juntas dos nossos ente-queridos. Preservar estes momentos de diálogo com o passado são a prova de que existe esperança no futuro. Por este motivo, é importante conservarmos esta vivência, mesmo que a música se ouça triste, na solidão dos dias chuvosos.
O amor e a saudade que sentimos na dor causada pela falta dos nossos mortos não é mais do que aquele grito surdo de querermos perpetuar aquém-vida e além-morte. São as glórias, as paixões e memórias vividas juntas dos nossos ente-queridos. Preservar estes momentos de diálogo com o passado são a prova de que existe esperança no futuro. Por este motivo, é importante conservarmos esta vivência, mesmo que a música se ouça triste, na solidão dos dias chuvosos.
1.º de Novembro
Um traço, um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho
Distúrbios, subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma
Solidão, saudade
Rumagens, romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado
Lágrimas, fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste
Solidão!
Saudade!
Romagens!
Romarias!
Solidão!
Saudade!
Queridos!
Defuntos!
O tema 1.º de Novembro, dos Mão Morta, figurou primeiramente no LP compilação
À Sombra de Deus, editado pela Câmara Municipal de Braga em finais da década de 1980.
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