segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Cruzeiro Seixas: homenagem ao último surrealista português

Perdemos Cruzeiro Seixas. O último sobrevivente do grupo de surrealistas de Lisboa partiu, ontem, a menos de um mês de completar 100 anos. Poeta, pintor, ilustrador e escultor, foi um sempre um artista completo apesar da sua genuína teimosia rejeitando qualquer um desses epítetos.
Para trás fica a sua obra, as viagens pelo mundo português e uma singular visão sobre a nossa natureza. De modo a homenageá-lo, nada melhor do que partilharmos um dos seus poemas mais evocativos dessa sua complexa relação com os mistérios da patriosofia.  

Cruzeiro Seixas (1925-2020).

Trota-se por certo de uma sala de operações 
até ao infinito 
pudicamente flor e crina adolescente 
ou seja simplesmente nuvem com árvores erectas 
mãos com algemas de prata 
lajes tumulares 
que na sua ignorância me recusam. 
Vê-se logo que nada sabem das formas que a noite toma 
descendo e subindo 
nos dois sentidos da luz. 
Na verdade 
quem é que não sente palavras-aranhas na alma? 
Quem é que não usa os recantos das janelas góticas 
para ali esconder o nevoeiro? 
Depois dos arbustos 
os bustos cobertos pela neve do futuro, 
isto no tempo em que as palavras 
ainda pairavam sobre o dilúvio. 
Silenciada a esfera armilar 
é com esferográfica que te envio as cores reinventadas 
prisioneiras entre destroços da mais alta antiguidade 
entre o céu e o inferno visíveis 
atravessados de veias 
e de rios, 
de luzes míticas 
de loucas viagens 
embalsamadas. 

Cruzeiro Seixas

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