terça-feira, 17 de abril de 2012

António Sardinha, a Contemporaneidade e a Fé

«Feliz de ti que crês! Eu não acredito nem deixo de acreditar. O século queimou-me as asas da fé e eu fiquei-me no limiar das portas da religião, sem poder sair nem entrar. No entanto é com melancolia cristianíssimo que eu olho os felizes que entram! É sempre bom ter-se uma certeza, ilusória embora, a que a gente se agarre nas oscilações da vida.»
António Sardinha numa carta datada de 03-11-1911,
endereçada à sua futura mulher. 

António Sardinha na sua juventude.

O positivismo de Auguste Comte veio abalar de vez os já frágeis alicerces de um paradigma tradicional, questionado pelos infames ventos jacobinos da Revolução Francesa de 1789, bem como pelo lado negro da esclavagista Revolução Industrial. À imagem do mundo ocidental, também Portugal se viu coberto pela nuvem negra de um racionalismo opressor da própria condição humana, estranho e antagónico à própria natureza do ser português e da cultura lusíada, caracterizada por uma profunda espiritualidade.
Para Portugal a entrada na contemporaneidade foi deveras violenta, mergulhando-nos um profundo sono de consequências tão nefastas como traumáticas. A generalizada confusão levantada pela corrente positivista assombrou e desgastou as sucessivas gerações de intelectuais portugueses, divididas na sua esmagadora maioria por uma luta interior, travada entre a sua ancestral espiritualidade e a imposição racionalista de um materialismo cego, fruto da tentativa aberrante de transformar o Homem em Deus. Um Deus da Razão, criado pelo próprio Homem, em oposição ao tradicional Deus criador.
Até mesmo António Sardinha, distinto poeta, ensaísta e doutrinador político-social, associado ao Integralismo Lusitano, o movimento monárquico católico português de carácter tradicionalista, padeceu de uma enfermidade espiritual, fruto do século e da época em que viveu. Esta herdara o pessimismo de finais do séc. XIX, nascido da ressaca de quase cinquenta anos de euforia científica. A sua letargia e vazio interior estendia-se a toda uma geração à qual pertencia e que, descrente das doutrinas da Igreja e das certezas da Razão, se refugiava nos meandros dos esoterismos e das sociedades secretas.
Foi a partir do contacto com as obras de Barrès, Bergson, Gustave Le Bon, Jules Soury ou Vacher de Lapouge, nomes ligados à revivescência católica iniciada em França durante o século XIX, que António Sardinha iniciou um processo de introspecção conducente ao seu regresso ao seio do catolicismo. Esta reaproximação foi inicialmente mais estética do que dogmática, mas à medida que mergulhava fundo na tradição político-religiosa portuguesa, mais foi sentindo a força do apelo da sua fé. 
Este processo de reconversão obrigou-o a ir de encontro a uma certa disciplina e doutrina, exigindo o seu esforço e atenção, potencializando desta forma o seu livre pensamento. Hoje, tempo e condições para discernir são dois elementos praticamente impossíveis de reunir. O ritmo da sociedade impele-nos a correr, enquanto as vicissitudes imorais do mundo moderno nos procuram ocupar cada segundo das nossas vidas, nem que seja com ruído ou entulho (des)informativo. Conforme defendia Henri Corbin, o bloqueio do ser humano no acesso ao estádio imaginal impede-o de realizar-se no seu todo, tornando-o mais submisso, conformado, deprimido, oprimido e facilmente manipulável. Por mais que acredite que não, o homem moderno aceita, de uma forma ou de outra, a ditadura do sorriso e o seu sistema, bem como o totalitarismo da Razão, da Ciência e de todos os dogmas sócio-políticos e económicos que procuram impor-nos. 
A arrogância advinda da falsa ilusão de que tudo está no Homem e no seu meio, não existindo nada fora dele e muito menos num plano metafísico ou espiritual, é a primeira causa para a existência de uma miopia intelectual generalizada, inibidora da própria problematização de hipóteses e até mesmo do desenvolvimento de um pensamento abstracto ou especulativo, específico e exclusivo da própria humanidade, assistindo-se à destruição dos racionalistas pelas mãos da sua própria Razão, essa pseudo-libertadora. A asfixia da fé representa, segundo esta perspectiva, um meio de opressão, um autêntico atentado à própria condição, liberdade e dignidade humanas.
Torna-se por isso pertinente a seguinte reflexão de António Sardinha que, apesar de escrita em 1912, se encontra longe de esvaziar nos seus conteúdos e actualidade:
«Claro que o meu religiosismo, além de ser um protesto contra a opressão do direito de pensar livre que por aí vai, é motivo de arte e de consolação espiritual. Não me importo com o que a razão me diz, oiço apenas o sentimento. E de resto hoje, por toda a parte o homem se está voltando de novo para a aspiração à imortalidade, visto que nada colheu dum século de positivismo estreito e dogmático. A religião não tem nada com os padres, como o Cristianismo nada com o Romanismo. Quem confunde as duas coisas é duma lamentável miopia intelectual.» 

1 comentário:

  1. Meu caro,

    Fantástica súmula do pensamento de António Sardinha. No entanto, cuidado com as citações, que muito pouco reflectem o pensamento religioso político da fase madura de Sardinha. Basta ver que Sardinha morre em 1925 aos 37 anos - imagine quão novo era em 1911 e 1912 quando escreveu essas palavras.

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