terça-feira, 23 de novembro de 2010

A filmografia de Michel Giacometti

«Há uma velha moda alentejana, entre as muitas que ele por cá ouviu e gravou, que diz: Eu sou devedor à terra / A terra me 'stá devendo / A terra paga-m'em vida / Eu pago à terra em morrendo. Deste povo que canta a vida do mesmo modo que canta a morte, como se uma não tivesse sentido sem a outra, guardou Michel a alma antiga já em névoa. E por isso não foi morrendo que ele pagou a sua dívida à terra Portuguesa, foi nela vivendo. (...)
Michel Giacometti é, repete-se, um português que, não por acaso, nasceu um dia na Córsega. Sempre o vimos como tal. E continuaremos a vê-lo, agora que por graças da técnica, ele regressa vivo para nós.
Ouçam-no, vejam-no, admirem o seu trabalho e empenho. O que ele filmou e gravou ter-se-ia perdido para sempre, não fosse a sua teimosia. Giacometti salvou-nos a alma.
»
Nuno Pacheco em Michel Giacometti - filmografia completa vol. 1.

O etnomusicólogo Michel Giacometti.

As palavras acima transcritas de Nuno Pacheco sobre Michel Giacometti, parecem-nos exageradamente exacerbadas, fruto de uma provável emoção perante o peso da obra deste grande nome da etnografia portuguesa, agora finalmente compilada e disponibilizada ao grande público.
Conforme nos relembrou José Alberto Sardinha num artigo publicado na edição do seminário Expresso de 6 de Junho de 1999, as recolhas de Michel Giacometti, não obstante a sua importância e peso, não devem ser olhadas como um resultado exclusivo, cabendo-nos aqui a obrigação de fazer uma  breve nota, salvaguardando trabalhos menos conhecidos, levados a cabo anos antes por etnógrafos e etnomusicólogos como Armando Leça, Kurt Schindler, Virgílio Pereira, Ernesto Veiga de Oliveira ou o próprio Fernando Lopes Graça. Destes, o mais importante foi indubitávelmente Armando Leça, cujos levantamentos de campo, efectuados a pedido da Comissão dos Centenários em meados de 1939, foram pioneiros e extensivos a todo território nacional, ficando apenas conhecidos pelo público em meados de 1983.
Polémicas à parte, o legado de Michel Giacometti constitui um verdadeiro tesouro do património imaterial português. Os seus trabalhos de recolha, desenvolvidos em território nacional a partir da década de 1970, permitiram o registo e a preservação do imaginário rural português, tantas vezes mais duro e árduo do que romântico. Contudo, beleza é o primeiro sentimento que podemos vivenciar ao visualizar os pequenos nadas que formam e constituem o corpo musculado de uma nação, na sua mais profunda essência e tradição. As imagens e sons capturados pelo etnomusicólogo francês natural da ilha de Córsega são no mínimo arrepiantes, permitindo-nos conhecer a força, o carácter, a fibra, o espírito e as vivências mais genuínas do povo português.
As suas recolhas áudio são há muito conhecidas no circuito comercial, em particular as que resultaram de um trabalho conjunto com o compositor Fernando Lopes Graça, tendo estas sido alvo de diversas edições, nos formatos vinil e CD. Contudo, a filmografia de Giacometti permaneceu guardada até hoje em arquivos vários, sendo raramente visualizada em sessões esporádicas, ou através de curtas passagens na televisão enquanto imagens de arquivo. Foi por isso oportuno o lançamento conjunto entre o jornal Público e a editora Tradisom, da obra Michel Giacometti - filmografia completa. Com o primeiro número a chegar às bancas no passado dia 22 de Novembro, esta colecção comemorativa do vigésimo aniversário do desaparecimento de Giacometti, constitui-se por 12 volumes, entre livros DVD e CD, podendo ser adquirido em qualquer quiosque, durante todas as segundas-feiras das próximas 11 semanas.

3 comentários:

  1. A "Carvalhesa" (hino de campanha do PCP), por exemplo, foi descoberta pela Comissão Política do partido através das recolhas de Giacometti e Kurt Schindler.

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  2. Por isso cremos que parte do peso e influência de Giacometti advém da sua proximidade política a determinados grupos que se apropriaram de uma mensagem marcadamente pura, incluindo-lhe um filtro de acordo com a sua cor. O trabalho de Michel Giacometti foi irrepreensível, uma mais valia para todos nós. Isso está fora de qualquer dúvida, contudo, fazer dele o primeiro ou o único etnomusicólogo a interessar-se e a registar a vida do nosso Portugal parece-me altamente abusivo e injusto para personalidades como Armando Leça, encobrindo mesmo a própria verdade histórica.
    Não podemos no entanto deixar de recomendar esta colecção. Tomara a nós termos todas elas disponíveis. Isso sim, seria um serviço público.

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  3. Desde há uns anos que as recolhas etnográficas têm tomado um novo fôlego. Não só a música, mas também lendas e experiência pessoais que compõem o rendilhado de um certo modo de ver e estar no mundo.
    A mim parece-me que, por vezes, a rapaziada que faz as recolhas cai num paternalismo pateta, mas a obra que têm realizado é de louvar.

    Aproveito para recomendar o filme 'Veredas', de João César Monteiro, onde as histórias e os cenários vão ao encontro do teor deste artigo que você tão bem escreveu.

    http://www.youtube.com/watch?v=N25f0E1JqB8

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