sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Revisitar Sóror Mariana Alcoforado

«Amo-te mil vezes mais do que a vida e mil vezes mais do que penso.
Como me és querido e como me és tyranno!
Não me escreves...
Não pude cohibir-me de te dizer isto, outra vez!
Vou recomeçar, e o official que se vá embora.
Que importa? Que parta...
Escrevo mais para mim do que para ti.
Busco apenas aliviar este coração.
Também, o comprimento d'esta carta vae metter-te medo...
Não a lerás.
Que fiz eu para ser tão desditosa?!
E porque me envenenaste assim a vida?
Ah porque não nasceria eu bem longe d'esta terra.
Adeus, perdoa-me.
Não me atrevo já a pedir-te que me ames.
Vê a que me reduziu o meu destino!...
Adeus.
»
Excerto da Segunda carta de amor, atribuída a Sóror Mariana Alcoforado. 

Segundo reza a história, o destino de Mariana Alcoforado fora desde cedo traçado por vontade dos seus pais que, de acordo com os costumes da época, falando-se em concreto de um período balizado entre o séc. XVII e o séc. XVIII, a destinaram à vida conventual. 
Já membro da Ordem Clarissas, mais por imposição familiar do que por verdadeira vocação mística ou espiritual, ela acaba por apaixonar-se pelo Marquês de Chamilly, um militar francês, de passagem por Portugal para apoiar a causa da Casa de Bragança, já no final da Guerra da Restauração, em meados de 1667 e 1668, quando este participava em manobras junto do convento de Beja onde se encontrava encerrada.
O envolvimento entre os dois tornou-se inevitável, resultando num terrível escândalo, em virtude da posição da família Alcoforado, da qual fazia parte Mariana. Temeroso do resultado da sua conduta, socialmente imprópria segundo os valores da época, o cavaleiro francês regressa apressadamente a casa, abandonando Mariana após alegados problemas familiares, falseando-a com promessas de um pronto regresso e reencontro.
É no seguimento desta separação de proporções flagelares que nascem as cinco pretensas cartas de Sóror Mariana Alcoforado que, durante séculos, comoveram e comovem ainda até os mais duros corações. Movida primeiramente pela esperança no reencontro, Mariana, vê-se invadida pela incerteza das longas noites em claro, na sequência do silêncio do seu amado Chamilly, até ao momento em que se mentaliza do abandono a que foi por ele sujeita.
Apesar das paixões que estas cartas inspiraram, um pouco por toda a parte, existem algumas dúvidas quanto à sua autenticidade, desde logo colocada em causa por autores como Jean-Jacques Rousseau, Alexandre Herculano ou Camilo Castelo Branco. Não obstante, as cartas de amor desta freira portuguesa contribuíram para a sua mitificação, não apenas num contexto nacional, mas também num plano ibérico e europeu, tal foi a expansão e identificação pessoal e colectiva com a dor da suposta autora e o seu profundo mal de amor. Vejamos, por exemplo, o que disse Teixeira de Pascoaes, em 1952, sobre o papel de Sóror Mariana na constituição mítica e espiritual d'a Alma Ibérica, na sua última conferência pública antes de falecer:
    «O osso ibérico deu o esqueleto de Cervantes. A carne lusitana deu o coração de Mariana e  o misticismo pantaísta de Frei Agostinho da Cruz. (...) Mas se quisermos obter a sentimentalidade peninsular temos que acrescentar a Santa Teresa a Sóror Mariana. São as duas mais belas expressões do amor. Mariana é o amor humano à força de ser divino. Teresa é amor divino à força de ser humano.»
Foi este carácter metafísico que, aliado ao aspecto romântico do amor proibido entre a monja portuguesa e o cavaleiro franco, ajudou a imortalizar e enraizar também  na cultura popular a figura de Sóror Mariana Alcoforado. Foram vários os escritores, dramaturgos, poetas, músicos e cineastas que se inspiraram nesta figura incontornável da cultura portuguesa. Até o próprio polémico realizador Jess Franco, ao escrever e dirigir o seu filme Die Liebesbriefe einer portugiesischen Nonne, se baseou, ainda que de uma forma excessivamente livre, naquela que foi sem dúvida uma das mais famosas freiras portuguesas.

 
Trailer do filme de 1977 Die Liebesbriefe einer portugiesischen Nonne,
realizado por Jess Franco.

Entre 18 de Outubro e 30 de Novembro, a companhia de teatro Seiva Trupe - Teatro Vivo, levará a cena no Teatro do Campo Alegre, a peça A Freira Portuguesa, da autoria da dramaturga italiana Maricla Boggio e inspirada nas famosas Cartas de Amor ao Cavalheiro de Chamilly de Sóror Mariana Alcoforado. Esta peça conta com a encenação de Claudio Hochman e com a interpretação dos actores Jorge Loureiro, Adriana Faria, Ana Oliveira, Cristina Cardoso, Filipa Duarte e Maria Mata, constituindo-se uma excelente oportunidade para revisitarmos esta história de paixão proibida e o mito que dela nasceu.

Teatro do Campo Alegre
Rua das Estrelas
4150-762 - Porto

Horário das apresentações
Terça-Feira a Sábado - 21:45
Domingo - 16:00

1 comentário:

  1. ♥ «Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to.»

    P.S.: Não imaginas o que eu estive pesquisando para vir parar aqui!

    ResponderEliminar